Formulário de contato

Nome

E-mail *

Mensagem *

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Kung Fu para Filósofos




Em uma reportagem de 2005 sobre um templo Shaolin, mosteiro budista na China, conhecido por suas artes marciais, um monge trouxe para discussão uma visão comumente equivocada: "Muitas pessoas têm uma idéia errada de achar que as artes marciais significam apenas lutar e matar". O monge completou, "O Kung Fu, na verdade fala sobre como melhorar sua sabedoria e inteligência." Na verdade, o conceito de Kung Fu (ou gongfu) é conhecido por muitos no Ocidente somente através das artes marciais que são mostradas em filmes como "Enter the Dragon", "Drunken Master" ou, mais recentemente, "Crouching Tiger, Hidden Dragon". No âmbito cinematográfico, por qualificados lutadores acrobáticos como Bruce Lee, Jackie Chan e Jet Li que são vistos como "mestres do Kung Fu."

Mas, como o monge Shaolin salientou, o Kung Fu engloba muito mais do que lutar. Na verdade, qualquer habilidade resultante de prática e muito trabalho pode ser tida como contendo o Kung Fu.
Kung Fu na dança, pintura, culinária, no ato de escrever, atuar, fazer bons julgamentos, lidar com as pessoas, até mesmo no governar.
Durante as dinastias Song e Ming na China, o termo Kung Fu foi amplamente utilizado pelos neo-confucionistas, os taoístas e os budistas como a arte de viver a vida em geral, e todos eles de forma inequívoca falaram sobre seus ensinamentos em diferentes escolas de Kung Fu.

Essa compreensão ampla do Kung Fu é uma chave (embora não a única), através da qual podemos começar a entender a filosofia tradicional chinesa e os seus pontos de convergência e divergência das tradições filosóficas do Ocidente. Como muitos estudiosos têm apontado, a orientação predominante da filosofia tradicional chinesa é a preocupação sobre como viver a vida, ao invés de descobrir a verdade sobre a realidade.

Zhuangzi, no século 4 A.C., fez o seguinte questionamento: era ele, Zhuangzi, que sonhara seruma borboleta ou era uma borboleta sonhando que era Zhuangzi? Esse pensamento precedeu em alguns milhares de anos a realidade virtual e o filme "The Matrix". Essa colocação foi tanto uma inspiração de Kung Fu como uma consulta epistemológica. Em vez de levar a uma busca de certezas e verdades, como o sonho de Descartes fez, Zhuangzi chegou à conclusão de que ele tinha percebido "a transformação das coisas", indicando que as pessoas deveriam seguir suas vidas através destas transformações, ao invés de tentar buscar sempre a verdade sobre o que é real.
Quando analisamos o que Confúcio disse sobre a "retificação de nomes" - é preciso usar as palavras apropriadamente - entendemos ser mais um método Kung Fu para garantir a ordem sociopolítica do que uma tentativa de captar a essência das coisas, como "nomes". Ou seja, seriam espaços reservados para as expectativas de como o portador dos nomes deve se comportar e ser tratado. Isso aponta para uma percepção do que J.L. Austin chama a função "performativa" da linguagem. Da mesma forma, os pontos de vista de Mêncios e de seu predecessor Xunzi sobre a natureza humana são mais recomendações de como se deve ver a si mesmo para se tornar uma pessoa melhor do que afirmações metafísicas sobre se os humanos são, por natureza, bons ou ruins. Apesar das afirmações de cada homem sobre a natureza humana serem incompatíveis umas com as outras, elas podem continuar a funcionar dentro da tradição confuciana como formas alternativas de cultivo de si.

A doutrina budista do não-eu certamente parece metafísica, mas o seu verdadeiro objetivo é libertar do sofrimento, pois segundo o budismo, o sofrimento vem do apego ao ego. As meditações budistas são práticas Kung Fu para se livrar de um apego ao eu, e não apenas auto-questionamentos para se obter a verdade proposicional.
Como nas palavras de Richard Rorty: confundir a linguagem da filosofia chinesa com um "espelho da natureza" é como confundir um menu de comida.

A essência do Kung Fu - várias artes e instruções sobre como cultivar a pessoa e a sua conduta de vida - é muitas vezes difícil de digerir para aqueles que estão acostumados com o sabor da textura da filosofia ocidental.
É compreensível que, mesmo após tentativas sinceras de entender, muitas vezes uma pessoa ainda pode não conseguir, devido à falta de definições claras de termos fundamentais e à falta
de argumentos lineares nos textos clássicos chineses. Isso, no entanto, não é uma fraqueza, mas sim uma exigência da orientação Kung Fu – o que não difere muito do fato de que, para aprender a nadar é necessário focar a prática e não a compreensão conceitual. Só indo além das descrições conceituais da realidade pode-se então acessar esta inteligência que é mais bem exemplificada através das artes como dança e representação dramática.

Esta sensibilidade ao estilo, tendências sutis na visão holística, exige uma visão semelhante à necessária para dominar o que Jacques Derrida identifica como o problema do logocentrismo ocidental (logos = razão). Ele ainda amplia seu pensamento para a epistemologia não-conceitual, reino em que a acessibilidade do conhecimento é dependente do cultivo de habilidades cognitivas, e não apenas do que é "publicamente observável" para todos. Ele também mostra que o cultivo de si não se limita a "saber". Uma pessoa exemplar pode muito bem ter o dom de influenciar os outros, mas não necessariamente ela sabe como afetar os outros. Na arte do Kung Fu, há o que Herbert Fingarette chama de a dimensão "mágica", mas “distintamente humana" da nossa praticidade, uma dimensão que "sempre envolve grandes efeitos produzidos sem esforço, de uma forma maravilhosa, com um poder irresistível que é próprio intangível, invisível, não manifesto."

Pierre Hadot e Martha Nussbaum, como resultado parcial do diálogo histórico-mundial da filosofia no nosso tempo, tentaram "corrigir o nome” da "filosofia", mostrando que os antigos filósofos ocidentais, como Sócrates e os seguidores das doutrinas Estóica e Epicurista estavam principalmente preocupados com força, com exercícios e práticas espirituais com o objetivo de viver uma boa vida em vez de puros esforços teóricos. Nesse sentido, a filosofia ocidental na sua origem é semelhante à filosofia clássica chinesa. A importância deste ponto não é apenas em revelar fatos históricos. Isso chama nossa atenção para uma dimensão que tem sido encoberta pela obsessão com a busca da verdade eterna, universal e da forma como é praticada, ou seja, através de argumentos racionais. Mesmo quando os filósofos tomam suas idéias como discurso teórico puro com o objetivo de encontrar a verdade, suas idéias nunca pararam de funcionar como guias para a vida humana. O poder das idéias iluministas modernas têm sido plenamente demonstrado tanto sob a forma de grandes realizações a que assistimos desde a época moderna como na forma dos graves problemas que estamos enfrentando hoje. Nossos modos de comportamento são muito moldados por idéias
filosóficas que pareciam inocentes o suficiente para serem tidas como verdadeiras. É irônico e alarmante que, quando Richard Rorty lançou ataques sobre a filosofia racionalista moderna, ele considerou como certo que a filosofia só pode assumir a forma de busca da verdade objetiva. Sua rejeição da filosofia cai na mesma armadilha que ele alerta as pessoas sobre – considerar as idéias filosóficas apenas como “espelhos” e não como “alavancas".

Pode-se também considerar a perspectiva do Kung Fu chinês uma forma de Pragmatismo*. A proximidade entre os dois é provavelmente porque este último foi bem recebido na China do início do século passado, quando John Dewey visitou o país. O que a perspectiva Kung Fu acrescenta à abordagem Pragmática, no entanto, é sua clara ênfase sobre o cultivo de si e a transformação da pessoa, uma dimensão que já está em Dewey e William James, mas que muitas vezes é negligenciada.

Um mestre Kung Fu não se limita a fazer boas escolhas e utilizar instrumentos eficazes para satisfazer quaisquer preferências que uma pessoa possa ter. De fato, o assunto nunca é simplesmente aceito como um fato adquirido. Enquanto uma ação eficaz pode ser o resultado de uma boa decisão racional, uma boa ação que demonstra o Kung Fu tem que estar enraizado em toda a pessoa, incluindo os seus sentimentos, a sua disposição física, e sua bondade, demonstrada não apenas através de suas conseqüências, mas também através do estilo que a pessoa pratica. Ele também antecipa o que Charles Taylor chama de "cenário" - elementos como tradição e comunidade – o que entendemos como a formação das crenças e atitudes de uma pessoa. Através da abordagem Kung Fu, a filosofia chinesa clássica exibe uma visão holística que reúne estas dimensões marginalizadas e, com isso, nos obriga a prestar muita atenção nas formas que elas se afetam mutuamente.

Esta abordagem Kung Fu parte de um conjunto de idéias como a virtude ética aristotélica, que centra-se no cultivo do agente em vez de na formulação de regras de conduta. Contudo, ao contrário da ética aristotélica, a aproximação do Kung Fu com a ética não depende de qualquer justificativa metafísica. Uma pessoa não tem que acreditar em um objetivo (“telos”) pré-determinado para os seres humanos, a fim de apreciar a excelência que o Kung Fu traz. Contudo, esta abordagem leva ao reconhecimento da importante função orientadora de perspectivas metafísicas. Por exemplo, uma pessoa que segue a metafísica aristotélica claramente se esforçará mais para cultivar sua inteligência, enquanto uma pessoa que segue a
metafísica confucionista relacional prestará mais atenção a rituais de aprendizado que harmonizem as relações interpessoais. Esta abordagem abre a possibilidade de permitir múltiplas e conflitantes visões de excelência, incluindo a metafísica ou crenças religiosas, através das quais elas são compreendidas e orientadas, e a justificativa destas crenças é, então, deixada para as experiências humanas concretas.

A abordagem Kung Fu não implica que a crença de que você pode fazer o que quiser é verdadeira. Esta é uma razão pela qual é mais apropriado considerar o Kung Fu como uma forma de arte. A arte não é em última análise mensurada por sua posição dominante na sociedade.
Além disso, a função da arte não é a reflexão exata do mundo real. Sua expressão não se restringe à forma de princípios universais e raciocínio lógico, e isso requer o cultivo do artista, personificação das virtudes / virtuosismos, imaginação e criatividade. Se a filosofia é "um modo de vida", como Pierre Hadot coloca, a abordagem Kung Fu sugere que tomemos a filosofia como a busca da arte de bem viver e não apenas como uma forma estritamente definida de modo de vida.

Sobre o Autor:
Peimin Ni é professor de filosofia da Grand Valley State University. Ele atualmente é também o Presidente da Society for Asian and Comparative Philosophy e é editor-chefe de uma série de livros sobre filosofia chinesa e comparativa. Seu livro mais recente é “Confucius: Making the Way Great”.
* O Pragmatismo constitui uma escola de filosofia, com origens nos Estados Unidos da América, caracterizada pela descrença no fatalismo e pela certeza de que só a ação humana, movida pela inteligência e pela energia, pode alterar os limites da condição humana. (Wikipedia)