A Denominação “Moy Yat Ving Tsun”, o Grande Legado de Grão-mestre Moy Yat
Por Leo Imamura
Introdução
A Denominação “Moy Yat Ving Tsun” tem sido sinônimo de excelência na preservação do Sistema Ving Tsun no mundo todo. Reflete o legado de um dos maiores mestres de Artes Marciais do Século XX, Grão-mestre Moy Yat (1938-2001).
Concebida em 1957 e instituída em 1964 na cidade de Hong Kong, então uma colônia britânica na China, sua dimensão ganhou importância quando foi introduzida em 1973 na cidade de New York nos Estados Unidos, o epicentro do Ocidente.
Em 2002, a Denominação “Moy Yat Ving Tsun” teve sua importância reconhecida na própria China, quando o Museu de Foshan posicionou Moy Yat como o único discípulo do Patriarca Ip Man radicado no Ocidente (juntamente com o legendário Bruce Lee) em destaque no Ip Man Museum, órgão oficial chinês para a preservação do legado da mais importante linhagem do Sistema Ving Tsun.
Em sua homenagem (traduzido da versão em Chinês), foi escrito o seguinte:
Moy Yat (1938-2001), natural de Duen Fan, Toi San, Kwong Dung. Desde cedo voltou-se às artes marciais. Mais tarde seguiu Ip Man para praticar. Em 1965 fundou em HK a “Ving Tsun Moy Yat Gwok Sut Gin San Hok Yuen”, onde foi a referência primária por anos, seus discípulos sendo inúmeros.
Em 1973, Moy Yat levou sua habilidade para a América e em New York continuou estabelecendo escolas e aceitando alunos. Freqüentemente, ele ia a várias nações ministrar seminários. Seus discípulos também fundam escolas e aceitam alunos em todos os cantos. Ele enfatizou que seus dai ji (discípulos) “reverenciassem os mestres e valorizassem o caminho, mantivessem os ritos e tivessem cuidado e respeito”. Por isso, mereceu a admiração de colegas de trabalho e de tung mun (co-discípulos). O conhecimento de Moy Yat era amplo: escultura, inscultura, pintura e literatura. Além de compor artigos, ainda atuou como consultor deste museu. Pode ser considerado como possuindo man (intelectualidade) e mo (marcialidade) ambos persuasivos.
Entretanto poucos sabem exatamente do que essa denominação diz respeito. Sua complexidade de conceito, típica de um intelectual como Moy Yat, raramente é alcançada por uma pessoa que pouco conhece sobre a cultura chinesa.
O objetivo deste artigo é apresentar pela primeira vez em língua espanhola os pensamentos desse que foi um dos principais discípulos de Ip Man de repercussão internacional, segundo o próprio Curador do Museum of Foshan, Leung Kwok Ching.
É importante frisar que estes pensamentos serão expressados por mim, conforme minha própria compreensão.
Obviamente, não tenho autoridade para falar em nome de Moy Yat – ninguém a tem -, mas após trilhar o caminho das Artes Marciais por 36 anos e segui-lo por 14 anos, quando tive o privilégio de ter sido objetivo do compartilhamento de suas reflexões, penso que tenho o direito de opinar sobre seu importante legado.
Tudo que aprendi sobre a cultura chinesa foi dentro da relação mestre-discípulo.
Grão-mestre Moy fazia uso do dialeto cantonês para pronunciar os termos chineses. Assim, será esse dialeto que usarei para discorrer sobre os conceitos-chaves do pensamento de meu mentor. Em caso de expressões chinesas consagradas no dialeto oficial, eu os mencionarei entre parênteses logo após a expressão em cantonês.
Minha estratégia para introduzir ao leitor os pensamentos de Moy Yat será apresentar sua arte, sua pessoa e seu legado.
Espero que o leitor aprecie meu trabalho.
Sua arte: o que é o Sistema Ving Tsun?
Apresentar o Sistema Ving Tsun não é uma tarefa fácil. Afinal, como identificar as qualidades distintivas que o faz ser único?
Lembro-me das críticas de Moy Yat sobre a forma como que o Ving Tsun era apresentado:
“A arte marcial mais eficiente do mundo”
“ Um estilo de Kung Fu rápido de aprender”
“ A arte chinesa de mais famosa do mundo”
Tudo isso é muito ingênuo, pretensioso, infantil. Essas expressões hipérbolicas denotavam uma ignorância que um intelectual como Moy Yat lutava bravamente para esclarecer. Ele, mais que ninguém sabia das qualidades do Sistema Ving Tsun. Mas também conhecia as qualidades das outras manisfestações artísticas, - particularmente as marciais - , visto que era um profundo conhecedor das artes clássicas chinesas.
A grande questão é evitar a parcialidade para expressar o todo. É o perigo do rótulo, da generalização. Por este motivo, não desejo definir (“marcar um fim”) o Sistema Ving Tsun. Mas posso perfeitamente fazer uma proposição para o seu entendimento. Dar um ponto de partida que estrategicamente me permita alcançar a compreensão plena do significado.
Assim, é a título de proposição e não de definição que apresento o Sistema Ving Tsun da seguinte maneira:
O Sistema Ving Tsun é um sistema chinês de Inteligência Estratégica, cuja elaboração é atribuída à Fundadora Yim Ving Tsun. É’ integralizado por seis listagens de dispositivos corporais de combate simbólico: Siu Nim Tau, Cham Kiu, Biu Ji, Mui Fa Jong, Luk Dim Bun Gwan e Baat Jaam Do.
Vejamos os pontos apresentados nesta proposição:
1. Sistema Chinês de Inteligência Estratégica
A Inteligência Estratégica (Kung Fu) é a habilidade de explorar o potencial (Sai) de transformação de uma situação (Yeng), atuando sobre as condicionantes para se alcançar um efeito.
Sua sistematização, dentro do pensamento chinês, obedece o funcionamento bipolar de união e interdependência, os consagrados Yin-Yang (Yan-Yeung).
Denominada Hai Tong, esta concepção chinesa foi fruto da necessidade de desenvolver um sistema sustentável que fosse capaz de antecipar o inesperado, a partir do reconhecimento de que era impossível modelar a evolução natural de uma tendência, já que ela é constantemente mutável.
Por isso que os sistemas clássicos chineses, também chamados de “sistemas de variação”, são compostos por listagens de possibilidades de mudança, a fim de explorar o potencial (Sai) de cada configuração particular (Yeng).
Com base nessas listagens, um Hai Tong apresenta uma variação da lógica (Lei) em situações que vão de um extremo a outro e permite identificar o desvio que a diversidade de cada situação (Yeng) a ser encontrada oferece, tal qual acontece amplamente com a realidade. Esta variação é identificada por domínios (Lin Wik), que são manifestados através de cenários previstas pelo próprio sistema (Sau), cenários que necessitam de uma avaliação circustancial caso a caso (Po) e cenários não previstos pelo sistema (Lei).
Grão-mestre Moy Yat expressava tudo isso num único aforismo:
“A finalidade do Sistema Ving Tsun é tornar uma pessoa relaxada”.
Para ele, o todo Hai Tong por excelência deveria condur o praticante a um estado sustentável de relaxamento (Fong Song), pois, a partir do momento que sua prática propiciasse a concepção da realidade de um extremo a outro, ele estará apto a se apoiar no potencial de qualquer cenário que vida viesse a oferecer.
2.Domínios Representados por Listagens
Sob o ponto de vista chinês, as listagens bastariam por si mesmas para formar um todo completo, já que elas exploram a realidade de um extremo a outro.
Mesmo que o título e a disposição de seus dispositivos contribuam para uma noção lógica (Lei) para cada domínio (Lin Wik), nada necessariamente é especificado, comentado ou justificado com relação à suas modalidades técnicas (Fa). Portanto, a identificação da lógica (Lei) de um domínio (Lin Wik) pode parecer desconcertante, já que se alguns de seus aspectos parecem uniformes e regulares, outros conduzem para extrapolação dos limites de um ordenamento dado como certo. Exatamente como a vida se apresenta.
Cada característica (Fa Do) é portadora de manifestação simbólica que pode ser vista como um guia para a compreensão do Hai Tong como um todo ou em parte.
A partir da prática da listagem de domínios, o conhecimento teórico não alcança o seu significado e a experiência vivencial (Sam Fa) torna-se necessária para o cultivo da Inteligência Estratégica (Kung Fu).
No Sistema Ving Tsun, ela ocorre de modo intuitivo e sutil, bastando para tal explorar o potencial de transformação contínua de cada uma das seis listagens (Siu Nim Tau, Cham Kiu, Biu Ji, Mui Fa Jong, Luk Dim Bun Gwan e Baat Jaam Do) que o integralizam. Note-se que o “seis” não representa uma quantidade limitativa, mas a qualidade dos domínios que vão até o extremo da mudança, ensejando, através de dispositivos corporais de combate simbólico, a percepção do potencial que envolve cada realidade.
3. Dispositivos Corporais de Combate Simbólico
A escolha chinesa de usar dispositivos corporais para a constituição de um sistema de inteligência estratégica parece óbvia, pois a experiência corporal é considerada a mais próxima, a mais íntima, a mais direta e aquela que se pode menos duvidar.
Para os chineses, nada é mais natural do que utilizar os movimentos do corpo humano no sentido de frustrar a atividade dicotômica do pensamento, que petrifica a fluidez de uma tendência e impede que se perceba os sinais ínfimos da transformação que está por vir.
Pode-se dizer o mesmo do combate simbólico, onde, desde o Período dos Estados Combatentes (476 a.C a 221 a.C.), a cultura chinesa aceita sua natureza como a representação do caos, daquilo que não pode ser modelado. Os chineses perceberam que o combate era uma experiência emblemática para compreender o funcionamento bipolar, possibilitando que pólos opostos se comuniquem entre si e se percebam um ao outro em situações de crise, momento onde o isolamento humano está tão presente. Mas pelo fato do combate ser simbólico, é possível gerar vínculo com o adversário, a partir de situações de complexidade progressivas de gestão de conflito.
Chamados de Jiu Sik, os dispositivos corporais de combate simbólico são considerados pelos chineses como os mais apropriados para promover uma experiência de tamanha significação que impulsiona a pessoa que a viveu a estender para a conduta aquilo que se tomou consciência a partir do outro.
Experimentada então ao vivo, a reação proveniente desta relação derruba momentaneamente as barreiras da intenção interesseira, individualista que entorpecem a percepção para explorar o potencial inscrito naquela situação específica (Yeng).
Por isso, que os sábios como Mencius (Mong Ji) associaram o desenvolvimento humano com a inteligência estratégica.
Mas essa associação – do desenvolvimento humano com a inteligência estratégica - com o combate simbólico só foi possível porque há 2.500 anos surgiu na China um fenômeno de importância cultural única: a feminilização da guerra.
4. A Feminilização da Guerra
Ao atribuirmos a Fundadora Yim Ving Tsun a elaboração das listagens de dispositivos corporais de combate simbólico que compõem o sistema que posteriormente levou o seu nome, preserva-se uma longa tradição de mais de 4.500 anos, quando Wong Tai, o Imperador Amarelo, recebeu um livro de caráter estratégico de uma exótica figura feminina. Esta obra defendia que a eficácia se ocultava baixo à máscara da delicadeza e da fragilidade representada pela atitude feminina.
Contudo, a feminilização da guerra só foi consagrada por Sun Ji, cerca de 2.000 anos depois, através da obra conhecida hoje como “A Arte da Guerra” (Sun Ji Bing Fa), onde a eficácia da guerra estratégica é consagrada no campo do feminino.
Isso implicava numa ruptura drástica com a atividade guerreira até então vigente, pois o combate era, acima de tudo, o palco onde se manifestava a virilidade dos guerreiros.
Ainda que a guerra continuasse a ser assunto de domínio masculino, as novas qualidades de um estrategista passaram a pertencer ao domínio do feminino, como a percepção, a moderação, a sustentabilidade da excelência, a antecipação, a intuição, a “não-ação”, a flexibilidade, a sutileza e a capacidade de lidar com a escassez de recursos, dentre outras.
Parece patente que os mestres do passado desejavam fazer do Sistema Ving Tsun um representante maior desta tradição. O próprio nome do sistema torna evidente este desejo e manter este legado é um compromisso primário de todos os descendentes da Fundadora Yim Ving Tsun.
De fato, não são comuns os sistemas chineses que são chamados a partir do nome do próprio fundador. No caso do Sistema Ving Tsun, foi uma homenagem dos descendentes legítimos da Fundadora àquela que se atribui a elaboração das seis listagens que integralizam o sistema.
A partir desse momento, iniciou-se uma tradição que vincula o acesso pleno ao Sistema Ving Tsun com os descendentes legítimos da Fundadora.
Ao longo das gerações, o Sistema Ving Tsun tem sido transmitido exclusivamente aos descendentes legítimos da Fundadora, onde cada geração posterior permanece vinculada à geração anterior até o desaparecimento desta. Esta solidez de relação entre mestre e discípulo permitiu uma evolução que conciliou a sabedoria dos praticantes do passado com a inovação dos praticantes do presente. Contudo, em meados do século XX, a internacionalização do Sistema Ving Tsun acelerou a deteriorização de seu processo de transmissão tradicional.
Grão-mestre Moy Yat, descendente direto da Fundadora e discípulo do Patriarca Ip Man, foi o primeiro mestre profissional de Ving Tsun consagrado no Oriente a emigrar para o Ocidente. Foi dele a iniciativa de empenhar seu próprio nome para resgatar o compromisso de seus antepassados para a excelência de transmissão do Sistema Ving Tsun.
Sua pessoa: quem foi Moy Yat
Moy Yat relata sua genealogia no Sistema Ving Tsun da seguinte forma:
O Ving Tsun Kuen Sut data da era Yung Jing dos Ching. Naquela época, o Monastério Siu Lam foi consumido por incêndio e cinco antigos foram viver reservadamente em famosas montanhas. Jo si Ng Mui fez permanecer seu bordão no Templo Pak Hok em Miu San, na fronteira de Wan e Kwai. Tendo casualmente presenciado uma serpente e uma garça combatendo-se uma à outra, percebeu um novo kuen fat. Havia pouco, Yim Ving Tsun estava sendo compelida por um tirano local a com ele se casar. Ela conseguiu que Ng Mui a ensinasse o recém-criado kuen sut. E valeu-se da punição do malvado para proteger-se a si própria. Ato contínuo, devotou-se a coligir o referido kuen sut, tendo o segmentado em Siu Nim Tau, Cham Kiu, Biu Ji, Mui Fa Jong, Luk Dim Bun Gwan e Baat Jaam Do. A descendência o celebrou, denominado-o Ving Tsun Kuen. Posteriormente, ela o transmitiu secretamente para seu marido Leung Bok Toa. Leung o transmitiu a Wong Wa Bo, que o transmitiu a Leung Lan Gwai, que o retransmitiu a Leung Yi Tai. Yee Tai o transmitiu para Leung Jan. Sr. Jan o transmitiu individualmente a Fung Wah e a Chan Wah Shun. E chung si Ip Man obteve “o manto e a tigela” de Chan em extremo. Ele é o atual jeung mun yan do Ving Tsun Pai. Eu, que modestamente me inscrevo entre os seguidores, soube de oitiva ter sido tal a sucessão da inapagável chama do kuen sut deste si mun. Destarte, minucio sua síntese, para a fazer saber aos pósteros e condiscípulos ainda por vir, e apenas isso. Registou Moy Yat.
Este é o único registro sobre a genealogia do Sistema Ving Tsun escrito sob supervisão do Patriarca Ip Man. Mais que um documento é uma obra de valor artístico inestimável que envolve várias artes clássicas chinesas.
Esta obra representa bem quem foi Moy Yat. Um homem de várias excelências que acima de tudo era um pensador clássico chinês. Por isso sempre se empenhou em alcançar a completude entre man - as chamadas “artes delicadas” - com mo - as conhecidas como “artes viris”. Foram deles estas palavras:
O fruto de man pesado com mo leve é o ‘erudito desviril’. A consequência de man leve com mo pesado é o ‘boi belicoso’. Nenhum dos dois cheira bem. Toda a gente sabe que o ideal é alcançar ‘capacidade em man e talento em mo’, ‘man e mo ambos perfeitos’.
Este tipo de pensamento foi adquirido durante sua formação com o Patriarca Ip Man, quando acompanhava seu mentor nos encontros com os maiores intelectuais chineses de Hong Kong. Moy Yat reunia um histórico de prática e conhecimento inigualáveis. Treinado em man e mo diligentemente pelo patriarca cerca de 10 horas por dia, convivendo com ele 7 dias por semana - ao estilo de uma tradicional Família Kung Fu - Grão Mestre Moy Yat teve o privilégio de, em pleno Século XX, receber de seu tutor os ensinamentos não só da técnica, como de sua extensão para a conduta no dia-a-dia, da mesma forma tradicional como mestre e discípulo transmitiram seu legado marcial na China ao longo dos séculos.
Por ser um pensador clássico chinês, compreendia como poucos de sua geração sobre a importância da transmissão tradicional do Sistema Ving Tsun.
O conceituado jornalista brasileiro Pyr Marcondes descreveu Moy Yat como não apenas como um exímio praticante do Sistema Ving Tsun: era um sofisticado, tradicional e memorável Grão- mestre do Ving Tsun.
Quando chegou com sua família aos EUA, no ano seguinte da morte do Patriarca Ip Man, Moy Yat era já uma das maiores autoridades do mundo no Sistema Ving Tsun.
Para muitos, - como o famoso editor inglês Bey Logan -, ele era considerado o braço direito de Ip Man.
Em 1973, em New York, Grão Mestre Moy Yat fundou a Moy Yat Ving Tsun Kung Fu Special Student Association. Como o próprio nome diz, uma escola para estudantes especiais, para poucos.
Enquanto a transmissão do Ving Tsun se popularizava, após a explosão de demanda promovida por Bruce Lee, Grão Mestre Moy Yat seguia preservando o coração da arte e sua mais alta excelência de forma cautelosa e qualificada.
Foi esse rigor à tradição que gerou um dos mais importantes centros de Ving Tsun de alta excelência do mundo, tendo sido constituído a partir dele também a Grande Família Moy Yat, um dos mais importantes famílias da história do Ving Tsun moderno.
Grão Mestre Moy Yat foi um profundo conhecedor da cultura da China, consultor de entidades de renome - como o Natural History Museum de New York - e também um autor de vários artigos e livros, pensador e artista plástico. Suas pinturas e gravuras, bem como seu domínio na exclusiva arte de cunhar selos tradicionais da China, colocam-no como importante referência no Ocidente para essa arte tão pouco conhecida.
Por seu brilhantismo como expressão maior da cultura chinesa no Ocidente, ele foi a ponte que uniu a passado e o presente, valorizando a prática do Ving Tsun tradicional no contexto da realidade moderna das sociedades contemporâneas.
Seu Legado: afinal o que é a Denominação Moy Yat Ving Tsun?
Como todo sábio chinês, Moy Yat nunca expressou formalmente o que seria a denominação Moy Yat. No fim de sua vida, ele insistia com seus principais discípulos que compreendessem melhor o processo da transmissão do Sistema Ving Tsun. Assim, em diferentes momentos, de acordo com a propensão de uma tendência, ele ia explicando para cada discípulo a importância do seu legado, a Denominação Moy Yat Ving Tsun.
As dificuldades de honrar a Denominação Moy Yat Ving Tsun tornaram-se evidentes depois de sua aposentadoria oficial em 28 de junho de 1997, pois se percebeu que o compromisso da Denominação Moy Yat Ving Tsun não era compreendida por todos os seus descendentes.
Em 24 de março de 2000, numa reunião com a presença de muitos dos seus principais discípulos, Grão-mestre Moy Yat alertou pela última vez em vida sobre a importância da Denominação Moy Yat Ving Tsun e o compromisso de excelência na preservação do Sistema Ving Tsun assumido por seus descendentes. Na ocasião, ele alertou sobre injustiça que seria para as próximas gerações, se eles transmitissem o Sistema Ving Tsun sem este comprometimento que caracteriza sua linhagem.
Em 10 de setembro de 2.000, na cidade do Rio de Janeiro, Grão-mestre Moy Yat realizava a terceira etapa de sua última viagem ao Brasil. Ao passar pela Praia de São Conrado, ele solicitou a mim, Leo Imamura, para elaborar um programa de instrumentalização da Denominação Moy Yat Ving Tsun.
Na ocasião Grão-mestre Moy Yat relatou que numa então recente experiência na confecção de bonecos de madeira denominados “Muk Yan Jong”, ele observou como um de seus discípulos havia construído equipamentos, - particularmente uma caixa de metal (metal box) engenhosamente desenvolvida -, para a produção destes aparelhos tradicionais. Ele ficou muito impressionado com a velocidade de confecção e a qualidade dos bonecos produzidos ao comparar com os carpinteiros de Hong Kong.
Assim Grão-mestre Moy Yat compartilhou comigo sua impressão sobre a importância da instrumentalização da Denominação Moy Yat Ving Tsun ao afirmar que “os americanos sempre produzem um instrumento (tool) para realizar suas tarefas”. Logo a seguir, completou seu pensamento ao dizer que “sem a criação de um instrumento (tool), o Sistema Ving Tsun não irá sobreviver no próximo século.”
Para instrumentalizá-lo, achei fundamental propor uma noção do que consistia a Denominação Moy Yat Ving Tsun. Depois de 5 anos de estudos específicos, consultando meus co-discípulos, revendo anotações pessoais, estudando todos os seus seminários e palestras, apresento a seguinte proposição:
A Denominação Moy Yat Ving Tsun é uma denominação que representa o compromisso, assumido por Grão-mestre Moy Yat (1938-2001) com os seus descendentes legítimos, de formação completa para a transmissão pura da listagem integral dos seis domínios do Sistema Ving Tsun.
. Compromisso de Grão-mestre Moy Yat com seus Descendentes Legítimos
Dificuldade de acesso legítimo à listagem integral de cada domínio, falta de tutoria qualificada para a transmissão pura e condições desfavoráveis para a formação completa do praticante foram os principais fatores que afetaram a preservação do Sistema Ving Tsun ao longo de sua história.
No entanto, a situação tornou-se crítica durante o seu processo de internacionalização, iniciado na metade do século XX.
As estruturas locais não sustentavam mais a demanda global proporcionada pelo interesse crescente pela prática do Sistema Ving Tsun. Neste novo cenário, qualquer praticante com habilidade mínima era considerado um mestre por estrangeiros que ignoravam as qualidades distintivas do sistema.
Quando Grão-mestre Moy Yat se estabeleceu na maior cidade dos EUA, New York, ele era o único praticante de Ving Tsun em solo americano com experiência profissional em Hong Kong, berço do Ving Tsun contemporâneo, e naturalmente se transformou no grande pilar da arte no Ocidente.
Um renomado conhecedor das artes tradicionais chinesas, ele decidiu então empenhar seu nome para explicitar seu comprometimento com a formação completa para a transmissão pura da listagem integral dos seis domínios do Sistema Ving Tsun, a fim de demonstrar a importância de estender para a conduta a consciência de si despertada pelo outro, processo tradicional denominado Sam Faat que Grão-mestre Moy chamava de “Kung Fu Life” (Vida Kung Fu). Para ele, um sistema de Kung Fu por excelência só seria importante se propiciasse que um praticante pudesse incorporar sua lógica interna e comprender esta lógica no mundo externo.
Respeitando os demais discípulos de seu mestre, Moy Yat nunca quis impor a importância deste pensamento para ninguém. Por isso, por humildade, denominou este compromisso de excelência com seu próprio nome. Este era o compromisso por ele para com os seus descendentes. Nunca foi intenção de meu mentor julgar qualquer outro trabalho de preservação ou promoção do Sistema Ving Tsun. Mas ele sabia também que era necessário preservar o Sistema Ving Tsun de uma maneira menos popular, respeitando sua natureza sofisticada tão difícil de explicar para o homem moderno.
Nascia, dessa forma, a Denominação Moy Yat Ving Tsun, um compromisso assumido posteriormente por descendentes legítimos de Grão-mestre Moy Yat e que passou a caracterizar sua linhagem.
Portanto, é um grande equívoco considerar que a Denominação Moy Yat Ving Tsun represente a interpretação pessoal de Moy Yat sobre o Sistema Ving Tsun. Se assim fosse a denominação seria Moy Yat’s Ving Tsun. O que não é o caso.
Para que a Denominação Moy Yat Ving Tsun tomasse forma, Grão–mestre Moy Yat partiu da idéia de transmissão pura como potencializador da extensão para a conduta da consciência de si através do outro, decorrente da experiência marcial proporcionada pelos seis domínios do Sistema Ving Tsun.
2. Transmissão Pura
A idéia da transmissão pura surge a partir do reconhecimento de uma relação radical (de raiz) entre as pessoas (Bun Sam) e que como uma experiência transindividual pode promover a tomada de consciência de si mesmo através do outro (Yan).
Na China, desde os tempos imemoriais, houve uma atenção em associar a experiência que leva uma pessoa a tomar consciência de si mesmo através do outro (Humanidade) e a sua efetivação para a conduta (Retidão).
O conceito de transmissão pura defende a importância uma pessoa aprender de si mesma através da outra, em vez de receber o ensinamento externamente de outro. Esse tipo de aprendizado, por ser intrínseco a própria pessoa, incorpora naturalmente a ela e, por isso, potencializa a capacidade de estender para a conduta o que foi aprendido.
Portanto, a transmissão pura tem característica incitativa, pois provoca o tutorado a aprender por si mesmo. Por outro lado, a transmissão pura também é indicativa porque se contenta em apenas sugerir, pois evita contaminar o processo de aprendizagem do tutorado com as idéias do tutor. Por apenas começar a dizer, ela se alastra de forma tão discreta, que não cessa de conduzi-lo a outros aspectos, fazendo-o considerar outras propensões, não então percebidas.
Para exercer estas características, a transmissão pura deve ater-se aos efeitos dos dispositivos corporais de combate simbólico (Jiu Sik) como provedor de experiência transindividual. Este dispositivo não tem valor de exemplo, mas de um traço individual, apreendido localmente, que se vê, que é patente, e que, ao aparecer, remete a um fundo oculto, que é revelador de uma globalidade, de uma sabedoria, do caminho que está presente em toda parte.
O Jiu Sik é um dispositivo que não tem a consistência de uma idéia e, por isso mesmo, não se consegue deixar de ser “impregnado” por ela. Em vez de forçar o pensamento, ela se infiltra nele, de forma contínua e variável. A engenhosidade para que o Jiu Sik assim atue está na sua disposição (ordem) na listagem integral dos domínios do Sistema Ving Tsun.
Por essa razão, os grandes mestres sempre relutam de decifrar o significado de uma técnica para os seus discípulos. Em vez disso, um bom mestre cria ambiência, objetiva – conteúdo programático, material didático - e subjetiva – metodologia, transmissão qualificada - , para que o discípulo descubra por si mesmo o seu significado, que pode ser perfeitamente diferente ou não.
3. Listagem Integral
A listagem integral é fundamental para a construção de uma ambiência objetiva necessária para a transmissão pura do Sistena Ving Tsun. Cada uma de suas seis listagens de dispositivos corporais de combate simbólico representa a integralidade de um domínio , assim descritos por Grão-mestre Moy Yat:
Siu Nim Tau
“O Siu Nim Tau divide-se em três seções. Toma os sau faat Taan, Bong e Fuk por principais. É o mais importante kuen sut no treinamento deste mun.”
Cham Kiu
“O todo do Cham Kiu divide-se em três seções. Esse kuen enfatiza exercitar o yiu ma para que se torne ágil, na esperança de que a tríade san, sau e ma seja unidade e que as ações sejam coesas.”
Biu Ji
“Biu Ji, três seções. Considera a ponte curta proteger cortando a Linha Central e o ging rápido e poderoso como aspectos principais. Também se lhe chama Gau Gap Sau. O Huen Ma e o Gam Jaang e todas as técnicas utilizadas nesse kuen são alicerce indispensável para aquele que aprenderá Mui Fa Jong. “
Mui Fa Jong
“O Mui Fa Jong, porque lembra a figura humana, é também chamado Muk Yan Jong. Perfaz 108 sik. Plantado no solo ou elevado no ar, ambos são possíveis. A madeira do pessegueiro para o jong san é particularmente boa.”
Luk Dim Bun Gwan
“O Luk Dim Bun Gwan toma o ombro por meio. Reúne-se o lik do cheung kiu de ambos os braços em um ponto e rapidamente se arremessa seis movimentos em direção a posições dessemelhantes. Esses são os seis pontos. Ainda há um gesto que, a partir do jung sin do alto, descreve um arco para baixo, e é o meio ponto. Por isso, o nome. O gwan fa é impetuoso e acurado. Por isso se diz gwan mo leung heung.”
Baat Jaam Do
“O Baat Jaam Do divide-se em oito seções. O comprimento da lâmina é de um pé inglês. Toma o Jaam e Biu por principal. O início da primeira parte consiste em fazer Jaam e Biu em direção ao jung sin. Quatro vezes com cada. Por conseguinte, sua denominação. Esse do faat representa o mais alto nível deste mun e é sigilo reservadíssimo. Logo, os que obtêm a autêntica tradição dessa técnica escasseiam.”
Cada uma destas listagens desenvolve um ângulo de visão que passa de um para outro, sem se deter em nenhum deles. Esta variação mantém os seis domínios do Sistema Ving Tsun dinamicamente abertos e interligados em duas trilogias distintas.
Desta forma, Siu Nim Tau, Cham Kiu e Biu Ji, todos Kuen Fa, modalidade técnica de Mãos Livres, compõem a Trilogia Fundamental do Sistema Ving Tsun. Grão-mestre Moy denominava-a de Ving Tsun Saam Cheung. Em contrapartida, Mui Fa Jong, Luk Dim Bun Gwan e Baat Jaam Do representam, respectivamente, as modalidades técnicas Jong Fa, Gwan Fa e Do Fa, compondo a Trilogia Superior do Sistema Ving Tsun.
Ao mesmo tempo em que assegura a tripartição dos papéis, o Sistema Ving Tsun se apresenta em funcionamento bipolar, como uma dualidade.
Com essas particularidades, o Sistema Ving Tsun consegue ser estável, dinâmico e inovador ao mesmo tempo. Sendo duas trilogias, o sistema passa a ter dois centros que oscilam de um para outro, permitindo abraçar todo o real e explorar as suas possibilidades, assegurando simultaneamente estabilidade (Sau) e dinamismo (Po).
Mas o brilhantismo dessa configuração de duas trilogias está no fato de que elas podem ser consideradas duas fases de três conjuntos. A inter-relação de ambas enseja o aparecimento de uma terceira fase (Lei) que garante a evolução do Sistema Ving Tsun.
Originalmente cada domínio era composto apenas pela listagem dos dispositivos corporais de combate simbólico característicos. Hoje, eles são chamados de Conteúdos Principais e levam o nome da listagem original.
Ao longo das gerações, porém, conteúdos adicionais foram desenvolvidos para melhor capturar e ativar toda eficácia possível da disposição dos jiu sik dos Conteúdos Principais. Por isso, são chamados de Conteúdos Associados.
Portanto, uma listagem é considerada integral somente quando os Conteúdos Associados empregados, ativam plenamente a ação dos jiu sik dos Conteúdos Principais.
Ao conjunto formalizado dos Conteúdos Principais e Conteúdos Associados denomina-se de Nivel de Treinamento e cada um leva o nome do respectivo domínio.
Essa completude, decorre do ajuste de cada conteúdo para a particularidade do praticante em vivenciar a lógica (Kuen Lei) manifestada num domínio específico do Sistema Ving Tsun. Em outras palavras, estes conteúdos devem ter uma relação personalizada com o praticante.
Desta maneira, o simples fato de ter acesso curricular aos conteúdos previstos nos seis níveis de treinamento do Sistema Ving Tsun, não significa que um praticante usufruiu da listagem integral de um determinado domínio.
4. Formação Completa
A formação completa do praticante de Ving Tsun nasce da idéia que o desenvolvimento humano se realiza em duas dimensões: a primeira no próprio praticante de Ving Tsun, enquanto tomada de consciência de si mesmo através do outro; e a segunda fora do praticante, sendo a extensão em direção aos outros, do mais próximo ao mais distante.
Inspirado nas funções-chave Toei (impelir), Gap (atingir) e Gwong (propagar) do texto clássico do confucionismo Mong Ji, o conceito de formação completa engloba a Mobilização Intrapessoal (no próprio praticante) e Interpessoal (fora do praticante).
Quando Grão-mestre Moy Yat dizia a seus discípulos que aprender com seus próprios erros os impelia a usar o “cérebro do Ving Tsun”, ele estava se referindo à Mobilização Intrapessoal, ou seja, gerar condições de aprendizado a si mesmo.
Por outro lado, ao orientar seus seguidores a propiciar condições de aprendizado a outros para que fossem atingidos pelos dispositivos do Sistema Ving Tsun, ele estava enfatizando a Mobilização Interpessoal Direta.
Por fim, a Mobilização Interpessoal Indireta gera condições para que o outro propicie condições de aprendizado a um terceiro. Isto ficava claro quando Moy Yat insistia para que determinados discípulos não praticassem diretamente com seus respectivos alunos, visto que esta atitude impedia que eles preparassem outros a fazê-lo em seu lugar. Esta extensão atinge maior propagação, pois uma única pessoa pode mobilizar inúmeras outras.
É a formação completa que possibilita a ambiência subjetiva – qualificação necessária do tutor - para a transmissão pura da listagem integral dos domínios do Sistema Ving Tsun.
Pelo acima exposto, percebe-se que a Denominação Moy Yat Ving Tsun é um compromisso extremamente difícil de se colocar em prática. Mas honrá-lo é, acima de tudo, de tudo garantir que o Sistema Ving Tsun possa ser preservado com excelência dentro de suas qualidades distintivas para que as gerações futuras possam usufruir plenamente deste fantástico sistema chinês de inteligência estratégica.